O avião
DUNIĀ MĪḪĀ’ĪL
O avião que vem de Bagdá
transporta soldados americanos
levanta-se por cima
por cima
por cima da lua refletida
sobre as águas do rio Tigre
por cima das nuvens engrumadas como cadáveres
por cima duma velha guitarra
por cima dos seus peitos órfãos
por cima da gente sequestrada
por cima das ruinas que cresciam com as crianças
por cima das cumpridas fileiras nas lojas de passaportes
por cima dum caixote aberto de tomates
o avião com os seus viajantes exaustos
aterrará depois a umas seis mil milhas
dum dedo mutilado na areia.
Há muitos anos Joan Navarro faz um belíssimo trabalho de divulgação da poesia do mundo, em diversas línguas, na revista digital sèrieAlfa. Em sua edição mais recente, a 62ª, sèrieAlfa apresenta quatro poetas iraquianos, que escrevem belos poemas como este aqui em cima. Ao lê-los, lembrei de uma conversa com Carlito Azevedo, muitos anos atrás, em que ele chamava atenção para um fato que até então me escapava: em qualquer povo, mesmo nos seus momentos mais difíceis – no Iraque bombardeado durante anos, por exemplo – há sempre alguém com um caderninho anotando as palavras que lhe ocorrem diante das formas que a vida assume. Enquanto ouve aviões e mísseis cruzando o céu, alguém – homem ou mulher, jovem ou velho – continua fiel ao seu ofício de registrar, em verso e prosa, o que se passa em seu mundo. Ou num mundo que invente para opor ao seu, para desmascarar o seu. Aliás, gosto de lembrar que boa parte da minha paixão por poesia se acendeu ao ler o volume “Poesia russa moderna” (de A. Campos, H. Campos e B. Schnaiderman), que me pegou, num primeiro momento, não tanto pela qualidade dos poemas e de suas traduções (que eu nem mesmo era capaz de apreciar então), mas pelas biografias espantosas daqueles poetas todos, cheias de prisões, exílios, fuzilamentos. Espantava-me, então, tentar entender como, em situações tão adversas (para dizer o mínimo), aquelas pessoas continuavam escrevendo poemas, como se soubessem que suas palavras, se eram armas quase imprestáveis para o combate imediato, podiam ser ao menos uma forma de atacar, fora do campo sob seu controle, quem os massacra, ao estabelecer pontes entre todos aqueles que resistem contra as mais diversas formas de opressão, nos espaços e nos tempos mais distantes. Não consigo pensar numa forma mais precisa de responder à persistente pergunta “Por que poesia?”
A sèrieAlfa está aqui: http://seriealfa.com/home.htm
Com uma ou outra variante, acredito que poucas outras respostas haverá para essa crucial pergunta,