(1)
Carlos Felipe Moisés foi embora. Foi encontrar novamente Margarida. Hoje cedo, mas eu soube agora. Quando o conheci, ele era um livro, depois outro, depois outros, até virar um amigo que parecia estar desde sempre por perto, uma espécie de mestre, Mestre, um monge dessa religião sem deus chamada poesia, que agora virou livros novamente, infinitos livros e textos e ideias e gestos, muitos gestos de afeto que nada vai apagar. Falamos há algumas semanas e ficou no ar a felicidade com a campanha do Corinthians, o próximo encontro na Urca, um livro novo na sua infinita gaveta. Ele me contou de seu “calo na aorta”, eu disse que não havia nada mais apropriado para um poeta, rimos, mas agora eu queria que aquilo fosse apenas uma metáfora. Ontem, no lançamento do livro de que participamos juntos, sua ausência era o assunto. Sabíamos que estava lutando, mas não havia tristeza porque sabíamos que Carlão era o mais forte de nós. E vai continuar assim, titular absoluto.
(2)
NOITE NULA
no sonho eu andava
sobre um tapete
que os livros com seu nome formavam pela casa
rebeldes saltados da estante
inconformados com sua morte
não havia mais palavras neles
e para onde eu olhava
via correr os seus versos
na pele viva da parede
no mármore da minha pele
no olho intenso do céu
e naquele momento
era como se todas as letras já escritas
girassem a milhões de quilômetros
por segundo para dizer
simplesmente: siga
seguimos, seus amigos,
e nosso mantra
era um poema-abismo
que roubamos de você:
«Eu me arquipélago
tu te maravilhas
ele se istma
nós nos montanhamos
vós vos espraiais
eles se eclipsam. »
no sonho não há adeus
não há deus não há dores
e as distâncias do mundo
e do além
cabem todas no abraço
não sei se é preciso acordar
(3) A gente normal, às vezes com 40, 50 anos, já parece, na vida, aquele funcionário que, 30 minutos antes do fim do expediente, já está arrumando a mesa para sair, fechando as gavetas, desligando o computador. Aos 40, 50 anos, já não atendemos mais as ligações da vida, porque podem atrasar nossa saída. Ontem, no velório do Carlão, falei para vários amigos que ele, aos 75, parecia estar chegando. Carlos Felipe Moisés, com tudo que já tinha trabalhado, parecia estar nas primeiras horas do dia que é nossa vida. Com o cabelo ainda arrumado no espelho da manhã e a leveza de quem teve uma ótima noite de sono. Nesse belo perfil na Revista Caliban, Ronaldo Cagiano fala que Carlão “nos deixa no auge de sua produção e vitalidade” – é exatamente a impressão que eu tinha. Ele tinha muito ainda para nos ensinar, muito mesmo, em todos os campos. Por isso a porta bateu tão forte.
https://revistacaliban.net/depoimento-um-intelectual-agudo-e-um-poeta-refinado-5dac231f467d