Heitor Ferraz Mello já fez muitos aniversários (hehehe!) e quero que faça muitos outros, mas hoje, ao saber da data, lembrei desse projeto que venho arrastando há tempos: explicar sua poética do aquém. Tenho a alegria de conviver com Heitor aqui e ali e, não raro, confundo o que ouço dele em nossas conversas e os versos que já li e reli tantas vezes. E acho que isso me diz muito sobre sua poesia. Com esse título estranhamente portentoso, escrevi em 2014 a primeira versão do livro/antologia sobre Heitor que deveria entregar para a coleção “Ciranda da Poesia” (da editora da UERJ), mas acabou ficando a meio caminho… então publico esses trechos aqui até mesmo para me animar a seguir com a tarefa, que ainda me inquieta. Depois disso, Heitor publicou um novo livro de poemas, Meu semelhante, que dá outras voltas nesse parafuso. Aliás, o título de seu livro mais recente, junto a tantos poemas que nele estão, me deu a convicção de que tateava no rumo certo ao apontar que sua poesia retrata “seus iguais”, fundindo-se a eles e, ao mesmo tempo, acusando que o poeta, igual entre iguais, está também aquém do que a vida devia ser. Num tempo em que a vida por aqui vai se tornando cada vez menos e menos, cada vez mais aquém, o desconsolo da poesia de Heitor é ainda mais doloroso e urgente. Parabéns e obrigado, camarada.
(PS: o problema mais recente que Heitor me causou foi ao comentar sobre Jack London… ele começou a falar de alguns contos e, depois, de O povo do abismo, de 1903. Tenho a mania de correr para ler o que os amigos indicam com alguma empolgação. Dito e feito: que livro! E me bateu especialmente porque, durante toda a leitura, ouvia nele o eco de um dos meus livros preferidos, A situação da classe trabalhadora na Inglaterra, que Engels escreveu entre 1842 e 1844. Desde então me sinto no dever de escrever algo sobre esses ecos entre London e Engels… não sei se alguém já leu isso por aí, mas agradeço muito quaisquer indicações!)
§ § §
“Sempre tenho ótimas ideias quando ando. Mas como nunca levo caderneta, elas se perdem. Escrevi os meus melhores textos, quase todos em prosa. Mas ficaram esquecidos na calçada. Em casa, gosto de escrever no computador, depois que aposentei a máquina de escrever. Um cinzeiro, meu maço de Marlboro, e alguns livros para avançar, deliberadamente, no alheio. Durante um tempo, escrevia de madrugada. Agora, não tem mais hora – escrevo bem menos. E quando trabalhava em firma, gostava de escrever na firma, um olho no computador e o outro na porta, para mudar rapidamente de tela, caso o chefe desse uma incerta na sala”.
Quando Heitor Ferraz Mello reuniu seus livros no volume Coisas imediatas, em 2004, foi buscar numa crônica de Drummond uma epígrafe geral para a poesia escrita até aquele momento: “(e aqui sou José, Leovigildo, Heitor, homem urbano em geral)”. Claro, para o poeta, fiel leitor do itabirano, encontrar seu próprio nome indicando o “homem urbano em geral”, num parêntese rápido do texto, foi um presente e tanto, ainda mais numa crônica em que Drummond explora o desencontro entre natureza e homem, entre a mudez das árvores e nossa “pressa de se desnudar”.
Não se explica, entretanto, pela simples coincidência do nome a escolha da epígrafe drummondiana para a reunião de sua poesia: Heitor encontra no Heitor de Drummond, no “homem urbano em geral” que cada vez mais vê árvores apenas em fotografias, a expressão precisa do ser que se aperfeiçoou em tornar o mundo inóspito para si próprio. E é desse lugar desencaixado que ele nos escreve.
A ideia do poeta como um depoente da condição de desgarrado, de estranho, de inadaptado (porque inadaptável) aos rumos que a vida toma é um traço recorrente da poesia moderna, para não dizer da poesia desde muito antes. Isto se deve, em parte, ao fato de que poetas afirmam, contra o homem que observam, contra o “seu igual”, não a imagem de um homem que seria o ideal (cuja possibilidade de existir é até mesmo negada pela maioria dos poetas modernos), mas a convicção de que o homem real está aquém – e se pergunta sem muita esperança: aquém do quê?
Não há, por certo, resposta absoluta para a questão que o perturba. A rigor, o poeta moderno não é tanto aquele que afirma o horizonte em direção ao qual devemos caminhar, mas principalmente aquele que intui que, da forma como vamos, não chegaremos a lugar algum. Ou seja, não se coloca como guia, mas como um dos passantes que, de algum modo, percebe que estamos patinando – ou regredindo. E mais ainda: percebe que não vamos deixar de andar nem mudar o rumo.
Em Heitor, a caminhada do “homem urbano em geral” é uma deriva incessante, marcada, ao mesmo tempo, pela descrença em ver a vida – a sua, a nossa – se afirmar de modo muito diferente (positivamente) e pelo elogio moderado de alguma felicidade e harmonia que se apresentam entre um passo e outro: “a batata da perna lateja/ de tanta rua engolida// e ele é manco,/ manco no verso,/ manco na vida”.
Heitor faz versos que falam, conversam, tecem ou perseguem com palavras os “transtornos” que assaltam o poeta. Essa poesia, que se irmana da fala, opta por caminhos que, durante as décadas em que Heitor vem publicando, são insistentemente bloqueados pelo discurso apressado da “inventividade” que implica superação de tudo o que dela difere. Heitor, ao contrário, não se excita com a ruptura pela ruptura, mas sim procura, digamos, linhas de continuidade poética para problemas que o homem está longe de superar, desfiando, a partir daquilo que chamou de “falta de traquejo/ com as coisas do cotidiano”, uma poesia que denuncia profundo desconforto existencial e social. Num poema, ao redor da bela imagem do ninho feito com as mãos para proteger a chama do isqueiro, Heitor explora na breve cena urbana – como é recorrente em sua obra – a comunhão fugaz que o cigarro permite entre o poeta e o mendigo, antes que se restabeleça a distância que o poema, ao flagrar, deseja superar. Deseja.
A colaboração ligeira com o mendigo revela ainda outro traço fundamental da poética de Heitor: não é a compaixão – de cima para baixo – que aproxima o poeta daqueles que expressam os desajustes mais graves da forma como a vida se moldou na cidade grande. É, na verdade, a convicção de que não há diferença significativa entre a “derrota” que a figura de homens abandonados na rua representa para a sociedade (mais do que para os eventuais “derrotados”) e a condição precária de todos os que passam por aquela calçada assolados pelos compromissos todos de uma vida que não interessa mais a ninguém. Não há vencedores: o jogo, na verdade, está perdido para todos. Assim, não há muito ânimo para estender a mão a quem caiu na caminhada, porque há mais ou menos o mesmo sentido em continuar nela ou abandoná-la.
Entre um passo e outro, sempre, “o coração bate sem convicção”. Ainda.
A forma como Heitor escreve, em versos que não se deixam elevar à música nem exageram na plasticidade, é em si mesma uma profunda crítica das pretensões de uma arte que tente estetizar a realidade.
É comum vermos o contrário: visões de mundo demolidoras que se vestem de uma linguagem que em nada revela a decadência que acusam. Em Heitor, no entanto, as palavras chegam embaçadas pela fumaça persistente da cidade e dos cigarros. Os versos tossem, tropeçam, tremem. Desfazem-se. Em certos momentos, param de falar, largam o discurso ou a imagem a meio caminho, como se desistissem.
Se os versos famosos denunciam que “o poeta é um fingidor”, na poesia de Heitor, incapaz de fingir, o poeta revela na camada mais explícita dos versos cada uma de suas dores, cada um de seus vícios, sua tensa desesperança, como nos incríveis poemas da série “Dias assim”, de Um a menos, em que martela – abrindo 10 dos 11 poemas – a afirmação: “O que te mata é este cigarro/ pela manhã”.
Sua força vem da forma como nos leva a passear por uma teia de cidades já distantes, relacionamentos desfeitos, retratos de desconhecidos, que, num susto, já se tornam nossos íntimos. Já se tornam problema nosso. Aquém de um horizonte que tanto busca quanto desconhece, pelo que diz, pelo que não diz, pela forma como diz e deixa de dizer, a poética de Heitor é uma das mais precisas expressões que a poesia reserva para esses tempos difíceis. Basta andar com ele para ver.
§ § §
Heitor nasceu em Puteaux, França, em 1964. Passou a infância em São José dos Campos e na adolescência veio para São Paulo, onde mora desde então. Formou-se em jornalismo na PUC/SP, fez mestrado em Literatura Brasileira e atualmente cursa o doutorado em Teoria Literária, ambos na USP. É professor de Jornalismo Cultural da Faculdade Cásper Líbero. Autor de Resumo do dia (Ateliê, 1996), A mesma noite (7Letras, 1997), Goethe nos olhos do lagarto (Moby Dick, 2001), Hoje como ontem ao meio-dia (7Letras, 2002), Pré-desperto (edição caseira, 2004), Um a menos (7Letras, 2009), Bichos da cidade (Comboio de Corda, 2012) e Meu semelhante (7Letras, 2016).
§ § §
ALGUNS POEMAS DE HEITOR FERRAZ MELLO
FIM DE TARDE
Transitam mais carros
e empregadas com saquinhos de pão
Três meninas conversam
a pressa de seus corações
e exercícios de casa
(uma delas tem os olhos puxados
e o pretexto para todos os meus vícios)
Na tristeza do elevador
subo sem ser reparado.
POETA
Acabou o fôlego.
E o coração já desgastado
de tanto metaforizá-lo
bate
sem convicção.
O verso por tempo
me bastou.
Toda a vida
era para o branco ocioso do papel.
Acabou o fôlego
e não me basto a mim mesmo.
Sento. A cabeça é vazia
de qualquer palavra.
Penso repetido,
nunca houve esforço em pensar.
Amo uma mulher
e isso é problema meu.
SEM PROFISSÃO
Logo dirão – afoitos –
que ele não larga
o pé da infância
que seus olhos
se esquadrinham
por janelas enormes
que vive cruzado
entre duas, três
cidades e um mapa
que a firmeza da mão
cedeu para a tremedeira
do fumante convicto
que em pouco tempo
embrenhou-se numa prosa
mais de bar que de poesia
Mas o que esperar
de um homem comum
carteira assinada?
Que ele deve no banco,
na pia batismal,
na confederação das almas?
Nada se deve esperar
– a batata da perna lateja
de tanta rua engolida
e ele é manco,
manco no verso,
manco na vida.
LADEIRAS
É tempo de subir
a ladeira – amoldar
o pé que já se esquecia
sentir que a sola
do sapato é um couro
a forma exata do pé
e se ajusta pouco
a pouco à forma antiga
do paralelepípedo
se ajusta como se
encontrasse no chão
o que não mais existia
um certo prazer
irregular de quem anda
se mistura, se funde
MEIO-DIA
Na hora do almoço
o sol do meio-dia
recorta
um triângulo
na sombra
onde o operário
em frente
come sua marmita
e toma um refresco
de laranja
– as máquinas
paradas
dão a impressão
de que ele
se acomoda
num ventre
de luz
ÁLBUM DE FAMÍLIA
Então
ele se sentou
num banquinho
ajeitou
o chapéu de feltro
colocou o filho
mais velho
ao seu lado
em pé
e se deixou fotografar
Então
ela se sentou
no murinho
da casa
esticou o vestido
cobrindo os joelhos
sorriu
para a lente
e também
se deixou fotografar
ELA AMAVA AS COISAS
Ela amava as coisas
com muita delicadeza
Ela amava os vasos
as xícaras as toalhas
Ela amava os brinquedos
os aparelhos elétricos
os secadores de cabelo
seus cabelos
com muita delicadeza
Como as flores
e a chuva interminável
no pátio
interminável como seu amor
o amor que ela sentia
e era forte
pelas coisas da casa
os pequenos detalhes
da sala em ordem
O cheiro de lavanda
creme de lavanda para pele
café com leite pela manhã
pão e manteiga
Ela amava as coisas
e hoje me inclino no vento
e a vejo saindo
sem as coisas que ela amava
O HOMEM ESPECIAL
O homem especial caminha na hora do almoço
Entra num restaurante e procura um lugar
de onde possa ver a rua através da imensa vidraça
O homem especial mastiga a comida
e vê a rua que passa em frente
ondulações de cabeças
e a esgrima de guarda-chuvas e jornais
O homem especial come calado
destroça uma torta de morangos
– a hora especial de sua torta de morangos
e névoas de café
CONVERSA NO BANCO
Não se sabe onde ela se encontra
ou onde a encontraremos
se com as mãos metidas no bolso
ou a capa preta cobrindo o rosto.
Nunca pergunte por ela:
quando você a pressente
não é como ela é, mas apenas como
se projeta no presente.
Cria aquela sensação de vácuo
de escada aberta, de morto-vivo
sem projeto imediato.
Ela se projeta
sem qualquer outro objetivo
– dar uma volta no parque
sentar num banco de cimento
as mãos nos joelhos
e observar
patos e gansos se bicarem
dentro e fora da lagoa escura.
HAPPY-HOUR
É daqui que eu falo,
de nenhum outro lugar
– da luz de mercúrio,
do vidro fumê, do abajur
aceso no prédio em frente
e que se torna tão nítido
que quase se isola
dentro da janela
É daqui
apesar de eu mesmo
sentir que me falto
e me falto tanto
que nem sei se sou eu
ou a saudade que não consola
É daqui,
onde pertenço,
entre um bloqueio e outro
de fora e de dentro
É deste lugar,
quando a tarde baixa
entre coisas
replicadas
WALKING THE DOG
Mal me levanto
tomo o café-da-manhã
e penso no cão,
corpo de feltro
largado na estrada
Mal me levanto
e já me sinto
ensanduichado
esborrachado
espremido
e reduzido
ao olhar do cão fugindo
atravessando a rua
com direito
de cidade
como os de Jude Stefan
– ou seria embalado
liofilizado
como no réquiem de Ruy Belo?
Com os sentimentos atolados
em coisas imediatas
deixo o cão
seja de um
ou de outro
As coisas imediatas
(em conflito permanente)
me levam para o carro
NÃO TE DISSE QUE ERA CAPAZ?
Havia um festival de salmão. Flores rápidas.
E eu estava com raiva de alguém que me disse
que eu não passava de um velho,
com manias arqueadas de velho.
Numa noite, mudei todos os quartos de lugar,
e passei a madrugada montando a estante de livros.
A CATEDRAL SE IMPÕE (ÀS 17H45)
O que observo deste 9° andar
de um prédio comercial
em São Paulo, na alameda
Ministro Rocha Azevedo
É o lilás de um fim de tarde
em contraste com o resíduo
dourado do sol se pondo
em algum lugar, atrás dos prédios
É a forma de uma catedral
que se desenha no asfalto úmido
com suas agulhas espichadas
pelos pneus dos carros
O que observo com o corpo
levemente apoiado na janela
é que o dia acaba do lado de fora
contra a continuidade do mercúrio
PRÉ-DESPERTO
Certa modéstia de alguns quartos de hotel, a rotina das cortinas fechadas vazando pouca luz, apenas o embaciado da luz dentro dos olhos pré-despertos. Pela manhã, o meio-sono irriga imagens de um quarto antigo, um hotel antigo, sem banheiro no quarto, apenas uma pia branca de bordas brancas. Projetadas no teto, as sombras de galhos e de um tanque de lavar. Apenas um quarto antigo contrapondo-se ao quarto deste outro hotel com a fumaça da caldeira: a máquina do hotel funcionando. Sonho que caminho pela rua, não encontro os paralelepípedos de outras ruas, o prazer ou desprazer momentâneo dos paralelepípedos soltos. Crianças de uniforme fazem algazarra entrando e saindo de túneis de plástico. Caminho pela rua com a sensação de que estou sem um dos meus sapatos, de que caminho meio-descalço. Olho novamente para meus pés: sim, os dois pés estão calçados.
[da série UM A MENOS]
O ninho se forma
com as palmas das mãos
Acendo o cigarro
que rapidamente acende
o rosto do homem
que pedia cigarros
E é como se o rosto
se incendiasse
por um minuto
destacando todos
os caminhos da pele
O ninho efêmero
se desfaz em fissura
e o homem volta
a se recostar
nas ondas
numa porta de aço.
DIAS ASSIM (3)
O que te mata é este cigarro
pela manhã, não saber o roteiro
a melhor estrada para a praia
os olhos dela me odiando
minha falta de traquejo
com as coisas do cotidiano
O sol ainda não é suficiente
mas já vem lanhando as fachadas
dos prédios, não são suficientes
a respiração, o contato íntimo
com as coisas que te cercam
A cama desaba como um cinzeiro
de úmidos troncos incendiados.